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© Editora Gato-Bravo 2017


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editor
Marcel Lopes

revisão Clarissa Rocha

projeto gráfico 54 design

imagem da capa "duplo y", fotografia digital, Isabel Barbas, 2014



Título Corvos Cobras Chacais

Autor António Carlos Cortez

Impressão Europress Indústria Gráfica

isbn 978-989-99934-0-2

1a edição: outubro, 2017

Depósito legal 430526/17


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Mas o poder da imagem analógica só se liberta sob a ação do ritmo. Só o ritmo provoca o curto-circuito poético e transmuta o cobre em oiro, a palavra em verbo.
leopold sedar senghor

Tinha começado a reabrir feridas. O que espantava não era o foco de luz que elas emitiam, mas sim o pulsar de cada cratera que vibrava, mostrando mais vincados os sons da gangrena interior. A dor era-lhe familiar. Mas por esses dias o gosto do sangue era-lhe estranho, metalizado, a ferrugem. Talvez fosse do cianeto ingerido anos antes ou da sensação de ter falhado a um qualquer encontro dentro de si – com quem, não sabe.

No sonho, a afasia era o que melhor ouvia. O homem tinha escavado um buraco para lá meter o seu rosto após uma lenta operação de desaparafusar o tronco da cabeça e vice-versa. Agora que só pescoço e rosto estavam unidos, pensava: que parte irá sozinha para o fundo da terra? O rosto, para que os olhos vejam os círculos do inferno ou a garganta, em cujas cordas poderão vibrar os sons que vêm das gargantas emudecidas dos desesperados de que eu serei a voz? Partiu em pedaços tudo – apenas as retinas podiam ser a metonímia do rosto e do corpo – as retinas, isso sim, tinham gravado tudo. Por elas ouvia-se a água represada, o som cavo e ralo por entre pedras, justamente essas, alacres pedras, onde as cobras procriam.

Naquele dia o tempo passou, parou, não sei bem... As mãos dela tremiam ao tentar revolver o pântano do olhar dele, das imagens convulsas que subiam à língua, subiam aos olhos, como maré de lixo impossível de parar, de conter... Eram palavras e eram espadas o que lias em mim? Mas o pior era o perímetro de fogo da mentira, a permanência de quem insistia em ser um herói muito contemporâneo e era, afinal de contas, um nazi, um culto fazedor da morte. A tua voz disse, com incisão perfurante, o que não posso esquecer: Sai-sai daqui.

O terror é isso: a imoralidade do amoral. Ele não sentia nada. Era como se uma anestesia absoluta percorresse veias, vísceras, órgãos, e o tivesse transformado no buraco negro por onde resvalavam cenas, mesmo as mais vívidas. Tinha assassinado, roubado, mentido, falseado a sua biografia e percorria, por vezes feliz, inconsciente, vazio de si, a cidade. E era uma sombra, uma sombra a sua única companhia: uma sombra sepultada nele, um fantasma, um vampiro cuja imagem se reflectia, estranhamente, nos espelhos, nas montras da cidade em chamas.

No mar talvez encontrasse refúgio. Isto é: um descampado por onde a fala pudesse prolongar alguns sinais. Mas as vagas rasgavam os seus olhos, rompiam por entre a pele e desaguavam no seu coração, poço sem fundo. Elidido, eclipsado, era um tubarão faminto e esperava, furtivo, que o cardume negro, um pouco mais acima, dos inocentes, se distraísse e ele, assim, subisse em direcção à pele atacando-os – esses cardumes.

Não, não era já possível salgar a carne – apodrecida carne do verão vulcânico. Súbito verão do inverno. Poderia, talvez, cobrir a pele com calcinadas pedras – instaurar no seu quotidiano a transmutação do corpo, túmulo hermético do mar. O mais era esperar, em silêncio, que alguém viesse depois devorá-lo para reviver nos dentes de alguém a vida antiga.

De dois em dois anos sondou os mares recônditos do abismo. Terminava por unir os fios do desespero e fazer com eles a corda de que se servia para descer às areias desses mares mortais. Tentava resgatar o tempo – reduzir a ecos as palavras que, pedras agudas, tinham cortado pontes, língua, aproximações diplomáticas entre adversários. Limar as pedras, essas palavras quentes, era o seu trabalho de escafandrista – um mergulhador da dor.

Provavelmente não voltaremos a falar.