© Editora Gato-Bravo 2017
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editor Marcel Lopes
revisão Inês Carreira
projeto gráfico 54 design e Aron Balmas
imagem de capa Shutterstock
Título Famosas últimas palavras
Autor Luís Filipe Cristóvão
Impressão Europress Lda.
isbn 978-989-99934-1-9
1a edição: outubro, 2017
Depósito legal 432101/17
Lisboa
gato·bravo
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Sumário
Fala de artesão
canto
transmontana
as funções
fala de artesão
lavrar o mar
o farol; o pescador
o pastor; a solidão
tempo de caça
oração
o livro de rute
epílogo
Fronteira
fronteira
sarah kirsch
juventude operária católica
ser Manuel Gusmão
chegados de Capadócia
centro de dia do Peloponeso
uma questão de perdão
o mar está cheio de corpos
difteria
dedicatória
canção
Casas funerárias
aviso
casas funerárias
luz
aquele álbum de verão
a árvore
letra M
num funeral de um velho
silêncio
acompanhado
torto
outra casa
Fala de artesão
canto
Permite aos mortos o descanso.
Deixa que na noite sosseguem os fantasmas,
abandona a cabeceira da consonância,
resiste, como puderes,
ao chamamento da parecença.
Vem, vem cantar.
Desliza o teu corpo pela terra,
repousa a enxada com que feres o cultivo,
esquece a memória dos passados,
resiste, como puderes,
ao triste destino que te havias prometido.
Desliza o teu corpo pelo espaço,
vem cantar.
transmontana
Deitam-se as árvores
sobre a terra
transmontana,
ao fim da tarde,
já a sopa está ao lume.
As velhas rezam,
renovam as flores
e logo se escapam,
encostadas às paredes
do largo da Igreja.
Deitam-se as árvores
e então pedras
crescem e engolem
toda a plantação.
O tempo é lento,
o lugar silencioso,
ao fim da tarde,
quando os homens
regressam.
Toca o sino
todas as meias horas
pela mão de Dona Inácia.
Toca o sino,
limpa-se o altar,
segue deus satisfeito
nesta terra
onde as casas
contam histórias
sem voz.
Toca o sino
e a vida leva-se,
carregando feno
para os animais,
olhando o burro
que adormece,
chamando o preguiçoso
cão que se oferece
ao visitante.
De pedra a ponte,
de pedra o monte.
De pedra os homens
que resistem.
De pedra a memória
de pedra a fuga.
De pedra as camas
daqueles que já não dormem.
Alguns pássaros ainda,
à procura das sementes,
vão caindo à beira-rio.
Um homem,
como colado à ponte,
observa-os.
A seu lado um gato,
curioso e atrevido,
vai medindo os pássaros
mais os seus gestos.
Sonha o gato
com a caça,
imagina a distracção
do pássaro
ou a demora,
o seu salto
e as unhas,
prendendo-o,
certeiras no desejo.
Sonha o gato.
O homem, não.
Baixou o Rio Malara,
é maré baixa
em toda a aldeia.
Baixou o rio
e de pouco servirá
agora a ponte,
se os carros largassem,
também,
este país.